A Arte de Morrer
Sermão da Quarta-feira de Cinzas
Pregado na Igreja Santo Antonio dos Portugueses
Roma - 1672
Duas coisas prega a Igreja na quarta-feira de cinzas a todos os mortais: ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. Mas uma de tal maneira certa e evidente, que não é necessário entendimento para a crer; outra de tal maneira certa e dificultosa, que nenhum entendimento basta para a alcançar. Uma é presente, outra é futura; mas a futura vêem-na os olhos; a presente não a alcança o entendimento. E que duas coisas enigmáticas são estas? Pulvis es, et in reverteris. Sois pó, e em pó haveis de converter. Sois pó, é a presente; em pó vos haveis de converter é a futura. O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, vêem-nos os olhos. O pó presente, o pó que somos, nem os olhos o vêem, nem o entendimento o alcança. Que me diga a Igreja que hei de ser pó. Não é necessário fé nem entendimento para o crer. Naquelas sepulturas, ou abertas, ou cerradas, o estão vendo os olhos. Que dizem aquelas letras e que cobrem aquelas pedras? As letras dizem pó. As pedras cobrem pó. E tudo o que ali há é o nada que havemos de ser. Tudo pó!
Se perguntardes de quem são pó aquelas cinzas, responder-vos-ão os epitáfios: Aquele pó foi Urbano, aquele pó foi Inocêncio, aquele pó foi Alexandre e este que ainda não está de todo desfeito, foi Clemente. De sorte que para eu crer que hei de ser pó, não é necessário fé, nem entendimento, basta a vista. Mas que me diga e me pregue hoje a mesma Igreja, regra da fé e da verdade, que não só hei de ser pó de futuro, senão que já sou pó de presente; Pulvis es? Como pode alcançar o entendimento, se os olhos estão vendo o contrário? É possível que estes olhos que vêem, estes ouvidos que ouvem, esta língua que fala, estas mãos e estes braços que se movem, estes pés que andam e pisam, tudo isto já, hoje, é pó: Pulvis es? Argumento à Igreja com a mesma Igreja. Ela diz-nos que supõe que sou homem; logo não sou pó. O homem é uma substância vivente, sensitiva, racional!
O pó vive? Não. Pois como é pó o vivente?
O pó sente? Não. Pois como é pó o sensitivo?
O pó entende e discorre? Não. Pois como é pó o racional?
Enfim, se me concedem que sou homem, como me pregam que sou pó? Quia Pulvis es? Nenhuma coisa nos podia estar melhor, que não ter resposta nem solução esta dúvida. Mas a resposta e a solução dela, será a matéria do nosso discurso. Para que eu acerte a declarar esta dificultosa verdade e todos nós nos saibamos aproveitar deste, tão importante desengano, peçamos àquela Senhora que só foi exceção deste pó, se digne de nos alcançar graça.
Enfim, senhores, que não só havemos de ser pó, mas já somos pó: Pulvis es. Todos os argumentos que se podiam por contra esta sentença universal, são os que ouvistes. Porém como ela foi pronunciada definitiva e declaradamente por Deus ao primeiro homem e a todos os seus descendentes, nem admite interpretação, nem pode ter dúvida. Mas como pode ser? Como pode ser, que eu que o digo, vós que o ouvis e todos os que vivemos sejamos já pó: Pulvis es?
A razão é esta. O homem em qualquer estado que esteja, é certo que foi pó e há de tornar a ser pó. Foi pó e há de tornar a ser pó? Logo é pó. Porque tudo o que vive nesta vida, não é o que é, é o que foi, é o que há de ser. Ora vede: No dia aprazado em que Moisés e os Magos do Egito haviam de fazer prova e ostentação de seus poderes diante de el-rei Faraó, Moisés estava com Aarão de um lado e todos os Magos do outro. Deu sinal o rei; mandou Moisés a Aarão que lançasse a sua vara em terra, e a vara converteu-se subitamente em uma serpente viva e temerosa. Fizeram os Magos o mesmo; começam a saltar e a ferver serpentes, porém a de Moisés investiu e avançou a todas elas, comeu e engoliu a todas. Refere o caso a escritura e diz estas palavras: a vara de Aarão comeu e engoliu a dos Egípcios. (êxodo 7-8)
Aqui reparo. Parece que não devia de dizer a vara, senão a serpente. A vara não tinha boca para comer, nem dentes para mastigar, nem garganta para engolir, nem estômago para recolher tanta multidão de serpentes: a serpente em que a vara se converteu, sim, porque era um dragão vivo, voraz e terrível, capaz de tamanha batalha e de tanta façanha. Pois porque diz o texto que a vara foi a que fez tudo isto, e não a serpente? Porque cada um é o que foi, e o que há de ser. A vara de Moisés antes de ser serpente foi vara e depois de ser serpente tornou a ser vara; e serpente que foi vara e há de tornar a ser vara, não é serpente, é vara. Se foi vara e há de ser vara, é vara: se foi terra e há de ser terra, é terra: se foi nada e há de ser nada, é nada; porque tudo o que vive neste mundo, é o que foi e o que há de ser.
Notai, esta nossa chamada vida, não é mais que um circulo que fazemos de pó a pó: do pó que fomos ao pó que havemos de ser. Uns fazem o círculo maior, outros menor, mas o caminho seja largo ou breve, ou brevíssimo; como é círculo de pó a pó, sempre e em qualquer tempo da vida somos pó. Quem vai circularmente de um ponto para o mesmo ponto, quanto mais se aparta dele, tanto mais se chega para ele. O pó que foi nosso princípio, esse mesmo e não outro é o nosso fim, e porque caminhamos circularmente deste pó para este pó, quanto mais parece que nos apartamos dele, tanto mais nos chegamos para ele: o passo que nos aparta, esse mesmo nos chega; o dia que faz a vida esse mesmo a desfaz; e como esta roda que anda e desanda juntamente, sempre nos vai moendo, sempre somos pó. Assim que desde o primeiro instante da vida até ao último nos devemos persuadir, convencermo-nos que não só fomos e havemos de ser pó, senão que já o somos.
Ora, suposto que já somos pó, e não pode deixar de ser, pois Deus o disse: perguntar-me-eis e com muita razão, em que distinguimos os vivos dos mortos? Os mortos são pó, nós, os vivos, também somos pó.
Em que nos distinguimos uns dos outros? Distinguimo-nos os vivos dos mortos, assim como se distingue o pó do pó. Os vivos são pó levantado, os mortos são pó caído. Os vivos são pó que anda os mortos são pó que jaz. Estão essas praças no verão cobertas de pó: dá um pé de vento, levanta-se o pó no ar, e que faz? Não aquieta o pó, nem pode estar parado; anda, corre, voa; entra por esta rua, sai por aquela; já vai adiante, já torna atrás; tudo enche, tudo cobre, tudo envolve, tudo perturba, tudo toma, tudo cega, tudo penetra; em tudo e por tudo. Sem aquietar nem sossegar um momento, enquanto o vento dura. Acalmou o vento: cai o pó e onde o vento parou, ali fica; ou dentro de casa, ou na rua, ou em cima de um telhado, ou no mar, ou no rio, ou no monte. Não é assim? Assim é. E que pó, e que vento é este? O pó somos nós: Quia Pulvis es: o vento é a nossa vida: Quia ventus est vita mea: Deu o vento, levantou-se o pó: parou o vento, caiu. Deu o vento, heis o pó levantado; estes são os vivos. Parou o vento, heis o pó caído; estes são os mortos. Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado, os mortos pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade. Esta é a distinção e não há outra. Dois lembretes hei de fazer hoje ao pó: um lembrete ao pó levantado, outro lembrete ao pó caído! Um lembrete ao pó que somos, outro lembrete ao pó que havemos de ser! Um lembrete ao pó que me ouve, outro lembrete ao pó que não me pode ouvir. O primeiro será o lembrete dos vivos, o segundo o dos mortos. Aos vivos que direi eu? Digo que se lembre o pó levantado que há de ser pó caído. Levante-se o pó com o vento da vida e muito mais como o vento da fortuna; mas lembre-se o pó, que o vento da fortuna não pode durar mais que o vento da vida, e que pode durar muito menos, porque é mais inconstante. Pó levantado, lembra-te outra vez, que hás de ser pó caído, e que tudo há de cair, e ser pó contigo. Ouro, prata, bronze, ferro, lustre, riqueza, fama, poder; lembra-te que tudo há de cair de um golpe, e que então se verá o que agora não queremos ver, que tudo é pó, e pó de terra. Ouvi a Santo Agostinho.
Abri aquelas sepulturas e vede qual é ali o senhor e qual o servo. Qual é ali o pobre e qual o rico? Distingui-me se podeis o formoso do feio, o rei do vencido, o forte do fraco, o belo do deformado.
Passa Santo Agostinho de sua África à nossa e pergunta assim: “Onde estão os cônsules romanos? Onde estão aqueles imperadores e capitães famosos que desde o Capitólio mandavam no mundo? Que se fez dos Césares e dos Pompeus, dos Mários e dos Silas? Dos Cipiões e dos Emílios? Os Augustos, os Cláudios, os Tibérios, os Vespasianos, os Titos, os Trajanos, que é deles? Não resta de todos eles outra memória, mais que os poucos versos das suas sepulturas”. Meu Agostinho, também esses versos que se liam então, já os não há: apagaram-se as letras, comeu o tempo as pedras: também as pedras morrem: Oh que lembrete este para Roma!
Nabuco depois de ver a estátua convertida em pó edificou outra estátua. Louco! Que é que te disse o profeta? Tu, rei, és a cabeça da estátua. Pois se tu és a cabeça e estais vivo; olhe a cabeça viva para a cabeça defunta: olhe a cabeça levantada para a cabeça caída: olhe a cabeça para a caveira. Oh se a cabeça do mundo olhasse para a caveira do mundo! A caveira é maior que a cabeça: para que tenha menos lugar a vaidade e maior matéria o desengano. Isto fui e isto sou? Este foi o lembrete aos vivos. Acabo com o lembrete aos mortos. Aos vivos disse: Lembre-se o pó levantado que há de ser pó caído. Aos mortos digo: lembre-se o pó caído que há de ser levantado. Ninguém morre para estar sempre morto; por isso a morte nas escrituras se chama sono. Os vivos caem em terra com o sono da morte: os mortos jazem na sepultura dormindo sem movimento, nem sentido, aquele profundo e dilatado sono: mas quando o pregão da trombeta final os chamar a juízo, todos hão de acordar, e levantar-se outra vez. Então dirá cada um com Davi: Lembre-se pois o pó caído que há de ser pó levantado. Este segundo lembrete é muito mais esperançoso que o primeiro. Aos vivos disse: lembra-te homem que és pó e em pó hás de retornar. Aos mortos digo com as palavras trocadas, mas com sentido igualmente verdadeiro: lembra-te, pó, que és homem e que em homem te hás de tornar. Os que me ouviram, já sabem que cada um é o que foi e o que há de ser. Tu que jazes nessa sepultura, sabe-o agora. Eu vivo, tu estás morto: eu falo, tu estás mudo; mas assim como eu, sendo homem, porque fui pó e hei de tornar a ser pó, sou pó, assim tu, sendo pó, porque foste homem hás de tornar a ser homem, és homem. Lembra-te homem!? Morre a águia, morre a Fênix; mas a águia morta não é águia, a Fênix morta é Fênix. E por que? A águia morta não é águia, porque foi águia, mas não há de tornar a ser águia. A Fênix morta é Fênix, porque foi Fênix e há de tornar a ser Fênix. Assim és tu que jazes nessa sepultura. Morto sim, desfeito em cinzas sim; mas em cinzas como as da Fênix. A Fênix desfeita em cinzas é Fênix, porque foi Fênix e há de tornar a ser Fênix: e tu, desfeito também em cinzas, és homem, porque foste homem e hás de tornar a ser homem. Não é a proposição, nem comparação minha, senão da sabedoria e verdade eterna. Ouçam os mortos a um morto. Quem melhor que todos os vivos conheceu e pregou a fé da imortalidade, senão Jó? “Morrerei no meu ninho (diz jó) e como Fênix multiplicarei os meus dias. Os dias soma-os a vida, diminui-os a morte e multiplica-os a ressurreição”.
Por isso Jó como vivo, como morto, e como imortal, não se comparou à águia, senão à Fênix; porque o nascer águia, é fortuna de poucos, o renascer Fênix, é natureza de todos.
Senhores meus, não seja isto cerimônia: Ou cremos que somos imortais, ou não. Se o homem acaba com o pó, não tenho que dizer; mas se o pó há de tornar a ser homem, não sei o que vos diga, nem o que diga. A mim não me faz medo o pó que hei de ser, faz-me medo o que há de ser o pó. Eu não temo a morte na morte, temo a imortalidade! Eu não temo o dia de cinza, temo o dia de páscoa, porque sei que hei de ressuscitar, porque sei que hei de viver para sempre, porque sei que me espera uma eternidade ou no céu ou no inferno.
Ora, senhores, já que somos cristãos, já que sabemos que havemos de morrer e que somos imortais; saibamos usar da morte e da imortalidade. Tratemos desta vida como mortais e da outra como imortais. Pode haver loucura mais rematada, pode haver cegueira mais cega que empregar-me todo na vida que há de acabar e não tratar da vida que há de durar para sempre? Tantas diligências para esta vida, nenhuma diligência para a outra vida! Tanto medo, tanto receio da morte temporal e da eterna nenhum temor! Mortos, mortos, desenganai estes vivos! Dizei-nos que pensamentos e que sentimentos foram os vossos, quando entrastes e saístes pelas portas da morte. A morte tem duas portas: uma porta de vido, por onde se sai da vida; outra porta de diamante, por onde se entra à eternidade. Entre estas duas portas se acha subitamente um homem no instante da morte, sem poder tornar atrás, nem parar, nem fugir, senão entrar para onde não sabe, e para sempre. Oh que transe tão apertado! Oh que passo tão estreito! Oh que momento tão terrível! Aristóteles disse que entre todas as coisas terríveis, a mais terrível é a morte. Disse bem; mas não entendeu o que disse. Não é terrível a morte pela vida que acaba, senão pela eternidade que começa. Não é terrível a porta por onde se sai; a terrível é a porta por onde se entra.
Oh que momento, oh que passo, oh que transe tão terrível! Oh que temores, oh que aflição, oh que angústias! Ali, senhores, não se teme a morte, teme-se a vida. Tudo o que ali da pena, é tudo o que nesta vida deu gosto. Oh que diferentes parecerão então todas as coisas desta vida! Que verdades, que desenganos, que luzes tão claras de tudo o que neste mundo nos cega! Nenhum homem há naquele ponto, que não desejara muito uma de duas: ou não ter nascido, ou tornar a nascer de novo para fazer uma vida muito diferente. Mas já é tarde, já não há tempo: Cristãos e senhores meus: por misericórdia de Deus ainda estamos em tempo. É certo que todos caminhamos para aquele passo, é infalível que todos havemos de chegar e todos nos havemos de ver naquele terrível momento, e pode ser que muito cedo. Julgue cada um de nós, se será melhor arrepender-se, agora, ou deixar o arrependimento para quando não tenha lugar, nem seja arrependimento! Deus nos avisa, Deus nos dá estas vozes; não deixemos passar esta inspiração, que não sabemos se será a última! Se então havemos de desejar em vão começar outra vida, comecemo-la agora. Comecemos de hoje em diante a viver, como gostaríamos de ter vivido na hora da morte. Oh que consolação tão grande será então a nossa, se o fizermos assim.
Quero acabar meu sermão, deixando-vos quatro pontos de consideração para os quatro quartos desta hora: Primeiro, quanto tenho vivido? Segundo, como vivi? Terceiro, quanto posso viver? Quarto, como é bem que viva? Torno a dizer para que vos fique na memória: Quanto tenho vivido? Como vivi? Quanto posso viver? Como é bem que viva? Lembra-te homem!
